O mercado de trabalho ainda é muito preconceituoso no que diz respeito ao visual dos funcionários. Essa característica aparece com mais rigor para as mulheres
Assista a relatos sobre gordofobia
Unhas pintadas, maquiagem e sapato de salto estão entre os elementos visuais que os ambientes corporativos, especialmente os mais formais, costumam cobrar, claramente ou implicitamente, das mulheres. Segundo consultores de RH, as que não se adequam a esses padrões podem ser, sim, prejudicadas na carreira. “No mercado de trabalho, os julgamentos que se fazem a partir da aparência das mulheres são um massacre. Mas um homem barrigudo e careca não deixa de ser contratado”, compara Tânia Fontenele, economista especializada em gênero e coordenadora do Instituto de Pesquisa Aplicada à Mulher.
“O padrão esperado pelo universo corporativo envolve maquiagem — pelo menos, base e rímel incolor — pois, sem ela, a mulher parece que não se preocupou com a ocasião; unhas benfeitas — mas sem exagerar nas cores —; salto alto, por demonstrar elegância; acessórios pequenos; e roupas não muito curtas ou decotadas. Assim, a mulher não vai errar, seja qual for o ambiente”, indica Daniela Verdugo, sócia diretora da FIT RH Consulting, administradora e pós-graduada em gestão estratégica de pessoas.
O visual não impacta a capacidade técnica, mas ainda é um fator gerador de julgamentos no mercado de trabalho, que, assim como a sociedade, é permeado de preconceitos. As exigências pesam mais para as mulheres, e há perfis que sofrem ainda mais: como as profissionais gordas, tatuadas, com piercing e de cabelos afro.
“Numa seleção, duas candidatas com a mesma competência técnica podem ser desempatadas levando em consideração o cuidado com a aparência”, admite. Ela percebe que o julgo é mais duro para as mulheres. “Para o homem, basta cortar o cabelo e, se tiver barba, aparar.” No entanto, o grau de exigência depende do ambiente. “Num banco de investimentos, onde as pessoas se vestem muito bem todos os dias, a funcionária que não se portar assim não será bem-vista e pode ser até abordada para pedir uma mudança”, diz.
“O cuidado com a beleza é inerente à nossa cultura — prova disso é que as empresas de cosméticos continuam crescendo mesmo em meio à crise, e a maior parte das compras é feita por mulheres. Muitas brasileiras gostam de se arrumar, fazer a unha e o cabelo. O problema começa quando esses aspectos são impostos, e a mulher é obrigada a seguir esses padrões para se manter ou conseguir um emprego”, afirma Claudia Lemoine, diretora executiva e sócia fundadora da Dromos Consult, psicóloga e especialista em gestão de pessoas.
Amalia Raquel Pérez-Nebra, doutora em psicologia social, do trabalho e das organizações e professora da área na Universidade de Brasília (UnB) e no Centro Universitário de Brasília (UniCeub), concorda. “Algumas mulheres acabam se divertindo com isso, pois veem, no salão de beleza, um lugar para falar da vida, desabafar, além de sair dali se sentindo mais bonitas. Por isso, o padrão estético não é estritamente ruim: ele é ruim quando a mulher se sente cobrada a segui-lo, não deseja fazê-lo e passa a sofrer isolamento social por isso.”
Claudia Lemoine defende que a imagem corporativa deve ser separada da beleza. “Questões básicas de higiene pessoal e roupas adequadas é que devem ser cobradas.” Quando passa disso, trata-se de “um processo de discriminação estética”, de acordo com Amalia Raquel Pérez-Nebra. É o caso de quando a empresa impõe que a funcionária alise o cabelo e use maquiagem. Segundo Claudia Lemoine, conselheira de Administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), “o modelo de vestimenta e aparência no trabalho, em geral, vai ao encontro dos padrões que a sociedade estabelece e determina”. A especialista em RH pondera que, como a sociedade é permeada por preconceitos, o mercado de trabalho os repete.
Para piorar, além de cobrar “cuidados” com o visual, o ambiente corporativo julga, em muitos casos, características estruturais, como cabelo, pele, tipo físico e personalidade. Sofrem com isso certos perfis de mulheres: as que não têm um estilo feminino de se vestir, as gordas, as que assumem o cabelo afro ou adotam rastafári ou dread, as que têm piercing e tatuagens, entre outras. “No Brasil, na maioria das vezes, acontece uma discriminação sutil. Assim, a pessoa sente que há algo estranho, mas não sabe o que é e não tem como combater”, aponta Amalia Raquel Pérez-Nebra.
Segundo as consultoras em RH Claudia Lemoine e Daniela Verdugo, tatuagens, piercings e alargadores são mais aceitos em ambientes alternativos e informais. “Com exceção de piercing pequeno de orelha e nariz, todos os outros são malvistos. A tatuagem também pode acabar sendo um fator de eliminação”, conta Daniela Verdugo. “Dread e black power são menos problemáticos hoje em dia porque as empresas têm trabalhado para eliminar o preconceito”, percebe Claudia Lemoine. “E o dread é ainda menos aceito. Além desses, também geram estranheza cortes e cores muito diferentes”, acrescenta Daniela Verdugo.
Com relação aos efeitos da idade sobre os cabelos, é muito mais comum ver homens grisalhos e, mesmo que o espaço de trabalho, institucionalmente, não discrimine mulheres de cabelos brancos, Claudia Lemoine observa que as trabalhadoras que assumem os fios alvos podem sofrer certa hostilidade. “É uma discriminação que aparece por meio das pessoas, dos colegas”, diz.
No caso de gordas, a intolerância pode partir da própria empresa. “A gente vê discriminação nos processos seletivos, sim. A mensagem que a pessoa passa é que, se negligencia a própria saúde, talvez não vá se dedicar tanto à empresa”, acredita Claudia Lemoine. “De fato, em médio e longo prazo, o sobrepeso e a obesidade podem gerar problemas de saúde. Tudo isso levará a pessoa a começar a faltar. Quando é obesidade mórbida, entendo o lado da empresa de não contratar, porque há um risco envolvido”, comenta a professora da UnB e do UniCeub Amalia Raquel Pérez-Nebra.
A gordoativista Raila Spindola rebate esse argumento. “Algumas vertentes acreditam que a raiz da gordofobia é a patologização, mas, não necesariamente, a pessoa gorda é doente. Sou classificada como obesa, mas não tenho problema de saúde, sou ex-atleta e me alimento bem. Massa corpórea pode gerar doenças, mas outras características também, como ser fumante. Por isso, acho que os empregadores cometem discriminação estética com as gordas, sim”, diz.
Diversidade
Segundo Claudia Lemoine, é válido que as instituições apostem em ferramentas de governança corporativa, como políticas voltadas a coibir discriminações, comitês, ouvidorias e caixa de denúncias. “Quando um funcionário sofre com o preconceito de um colega, ele processa a empresa, que é corresponsável pelo que acontece no ambiente”, diz. “Uma empresa que faz discriminação (estética ou de outro tipo) com funcionários ou potenciais funcionários, discrimina também os clientes. É uma estupidez querer restringir a mão de obra a um padrão, pois, se não há diversidade dentro da instituição, perde-se a chance de trabalhar com isso estrategicamente, sendo capaz de criar soluções para um público diverso. É uma atitude disfuncional”, analisa a professora de psicologia social e do trabalho Amalia Raquel Pérez-Nebra.
Mulheres reais / Conheça histórias de trabalhadoras que, em algum momento, foram julgadas pela aparência
Larissa Barros, 24 anos, estudante de psicologia, estagiária da Coordenadoria de Capacitação da Universidade de Brasília (Procap/UnB)
“Tenho nove tatuagens e piercings na orelha e no nariz. Já aconteceu de a galera perguntar onde mais eu tenho tatuagem, se eu tenho mais piercing do que mostro. É algo que passa como curiosidade, mas é preconceito velado. Também disseram que eu sou ‘muito doida’ por causa disso. Acho que a discriminação é mais forte pelo fato de eu ser mulher. Minha mãe, meu pai e minha avó não aceitam e dizem que eu não vou arrumar emprego. A dificuldade é real, tanto que, num processo seletivo de estágio, eu me saí muito bem, mas a empresa disse que eu não tinha o perfil adequado. Infelizmente, a discriminação existe e, das próximas vezes, vou tampar todas as tatuagens e tirar o piercing na frente do nariz. Apesar disso, não fico preocupada, porque, cada vez mais, os jovens — que têm menos preconceito — passam a ocupar cargos de chefia. Eu demonstro minha capacidade todos os dias, e isso independe de cabelo, cor da pele, tatuagem…”
Nicole Ferreira Magalhães, 38 anos, publicitária, dona do restaurante PiauÍndia, na Vila Planalto
“Hoje, eu tenho black power com o maior orgulho, sou negra e mãe de três filhos. Quando eu trabalhava na área comercial de uma grande empresa de mídia em São Paulo e vim representar a instituição em Brasília, senti que precisava alisar o cabelo para ser aceita. Quando eu chegava, até a recepcionista me olhava de um jeito estranho. Chegou a um ponto em que eu me via investindo mais que um salário mínimo para fazer a manutenção do cabelo liso e eu nem me reconhecia: foi um tempo em que minha identidade foi um pouco roubada. Eu não aguentava mais aquele sacrifício e decidi que queria secar meu cabelo ao vento, então fui ao salão de beleza e pedi para passarem a máquina 2. Eu me libertei quando fui trabalhar num grupo de televisão (a MTV) que tinha uma proposta muito aberta e alternativa, não existia um padrão a seguir. Hoje, que tenho um restaurante com meu marido, mantenho minha liberdade. Não deixo de receber olhares tortos (até de funcionários que tiveram dificuldades de ser comandados por uma mulher negra), eu observo, mas não me abalo. O olhar do preconceito é real, mas não volto para casa ferida por causa disso.”
Gabriela de Paula, 26 anos, advogada
“Sou gordinha desde que me entendo por gente e nunca fui sedentária. Joguei futebol a vida quase inteira e cheguei ao nível semiprofissional. Mesmo assim, sempre escutei que não daria conta das coisas, que teria problemas de saúde, que morreria cedo. Teve uma fase em que emagreci, mas desenvolvi bulimia, anorexia e distorção corporal. Depois que voltei a engordar, ouvi que eu não tinha engordado, mas sim explodido. Um colega num escritório de advocacia me disse que eu deveria perder peso para usar roupas melhores e ainda falou que parecia que eu estava vestida com uma capa de sofá. Tenho quatro tatuagens e, durante os estágios que fiz, pediram para eu tampar. Eu mesma demorei a me aceitar como gorda, fiz tratamento psicológico, participei de grupo de apoio, até chegar ao ponto em que consigo me olhar no espelho e dizer que sou bonita e gostosa. Quando comecei a fazer dança do ventre, há dois anos, teve gente que me perguntou se eu não teria vergonha de dançar com tudo balançando. Estou num nível avançado, ainda não ganho dinheiro com isso, mas tenho me apresentado. Gosto da ideia de levar às pessoas a mensagem de que sou gorda e posso dançar.”
Shirley Lemos, 33 anos, motorista de ônibus
“Sou a única mulher motorista de ônibus da Prefeitura de Cidade Ocidental — nessa profissão, realizo um sonho de infância, o barulho do motor é música para os meus ouvidos. Teve gente que não quis nem entrar no ônibus quando viu que quem ia dirigir era uma mulher, mas também teve quem me elogiasse. Muitas pessoas me olham de forma estranha pelo fato de eu não me vestir de forma feminina, ser lésbica e ter três tatuagens. Colegas de trabalho fazem, às vezes, piadas ou comentários sobre minha orientação sexual, acham que eu gosto de mulher porque tive alguma decepção com homem, dão em cima de mim. Tanto as lésbicas mais masculinizadas quanto os gays mais afeminados sofrem cobranças — mas os outros não têm que se importar com isso. A verdade é que é mais fácil condenar do que entender. Tenho um estilo próprio, sempre uso boné, camiseta, calça e tênis. Antes de passar no concurso da prefeitura, eu trabalhei como secretária num escritório e, nessa época, eu ainda não era tão masculina. Minhas características foram mudando. Até cinco anos atrás, eu estava sempre de cabelo escovado, mas, hoje, prefiro dar uma escondida nele, e minha mãe, que é cabeleireira, teve dificuldade de lidar com essa transição.”
Giovana Belo, 42 anos, advogada, servidora do Superior Tribunal Militar (STM), atualmente trabalha num gabinete na Câmara dos Deputados
“Eu pintava o cabelo para esconder os fios brancos. Para fazer a manutenção, tinha que ir muito ao salão, o que me incomodava. Então resolvi ‘branquear’. Descolori o cabelo inteiro e, aos poucos, ele vai se tornar todo natural. Em geral, vejo que o homem grisalho não sofre problemas, e a mulher de cabelo branco é vista como descuidada. Mas ouvi muitos comentários positivos de colegas que disseram que gostariam de ter coragem para fazer o mesmo que eu. Várias profissionais em cargos de destaque têm assumido os fios brancos, mostrando que chegaram ali por causa da competência. O maior exemplo disso é a presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Carmen Lúcia. Eu tenho seis tatuagens e, no STM, no início, várias pessoas tinham reservas comigo. Como sou concursada, a situação não é tão ruim, mas a discriminação ainda atrapalha a progressão na carreira. O padrão de visual cobrado é muito alto para mulheres. Se o homem é desleixado, é machão. Se a mulher é desleixada, é vista como porca. É injusto, ainda mais porque isso não afeta o desempenho profissional.”
“Acho que toda pessoa com excesso de peso sofre discriminação em algum momento da vida. Ultimamente, as pessoas começaram a ter mais cuidado na hora de falar certas coisas, mas o preconceito ainda está enraizado na nossa sociedade. Tive problemas em seleções de emprego e fui deixada de lado por conta do peso, principalmente em funções que prezam pela imagem, como as de vendedora e atendente, que eu ocupei num estúdio fotográfico. Eu não gosto de usar saia, e minha chefe queria que eu usasse e entrasse em padrões diferentes. Ela chegou a me perguntar se eu emagreceria 10 ou 15 quilos para melhorar a imagem da empresa. Além disso, a mesa onde eu sentava era extremamente apertada, e eu sofria com isso, acabava sendo desastrada e derrubando coisas, porque eu mesma mal cabia ali e sempre diziam que era porque eu era gordinha. No ambiente acadêmico, não tenho esse problema, porque é um ambiente muito misto. A gordofobia é um problema que precisa ser discutido principalmente por causa da pressão estética, que é muito mais rígida para a mulher. Faço dança do ventre há um ano, e, quando fui comprar roupas para a aula, houve quem me perguntasse: ‘mas você vai ficar com a barriga de fora?’ A questão é que quem tem que saber o que fica bem no meu corpo sou eu mesma.”
Autora: Ana Paula Lisboa
Autora: Ana Paula Lisboa
Fonte: Correio Braziliense
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